Das desigualdades da morte.
Morreu António Borges. Mas o importante não é ele ter morrido, como morreu, como viveu. O que eu quero sublinhar é a desigualdade da morte, de como se morre.
Não se pode dizer, para não ferir susceptibilidades, que me choca a forma como se morre em Portugal.
Como um rico, com cancro, morre melhor do que um pobre. Aparentemente isto é raiva, ódio aos ricos. É falar sem racionalidade. Pois racionalidade é algo que nunca vi no tratamento de doentes crónicos, nomeadamente oncológicos, no nosso país.
E descrevo uma história que não é a minha.
"Em 22 de Março foi diagnosticado um cancro de pulmão, carcinoma de pequenas células, estágio IV ao meu pai. (...) O diagnóstico demorou meses. Desde infecções respiratórias, ataques de ansiedade (?), gripes. Meses até dizerem: cancro. O meu pai era já um doente de risco, sempre seguido no hospital dados os problemas cardíacos que tinha. Nunca ninguém detectou o cancro que lhe corroía as entranhas.
Nesse momento soube que o meu pai ia morrer em breve, embora nunca o tivesse verbalizado.
Começou, pois, a saga dos tratamentos. Protocolos com quimioterapia e radioterapia. Medicamentos, atrás de medicamentos.
O meu pai acabava de concretizar o sonho de uma vida, licenciou-se em Direito. Velho demais para trabalhar, novo demais para a reforma, dizia-me, com os olhos pregados no chão «quem quer alguém com cancro?». Nunca lhe tinha ouvido nada derrotista. Desde o primeiro minuto, desde sempre, nunca desistia ou se sentia derrotado. Desta vez era diferente. Pronto para enfrentar o mundo e a doença, sabia bem das limitações.
Fomos então pedir a invalidez. A Segurança Social recusou. Sem subsídio de desemprego, sem pensão, a companheira desempregada de longa duração. Uma filha de três anos.
Os medicamentos eram pagos entre mim e a minha irmã. A família ajudava no que podia. O meu pai não tinha carro. A minha lata velha servia-lhe, enquanto pôde conduzir, para ir aos tratamentos (não há transportes públicos nem hospitalares).
Acabada a fase da quimioterapia, seguia-se a radioterapia paliativa. O hospital recusou. Era paliativa.
Levantámos uma tempestade, todos os órgãos de comunicação social se interessaram. O hospital voltou atrás. Foi ao IPO – Porto onde tinha que ficar todo o dia porque só havia um transporte para os doentes. Caso quisesse vir mais cedo, porque não aguentava estar lá, teria que pagar. Ficava lá.
Houve meses em que não tomou toda a medicação. Não tinha dinheiro e era demasiado orgulhoso. Não pedia. Era preciso descobrir e estar atento ao que faltava.
Liguei para a Fundação Champalimaud mal soube da máquina que apenas com uma sessão de radioterapia diminuía o tumor de forma significativa. Responderam-me que precisava de uma consulta de avaliação e a sessão de radio seria 5 000 euros. Perguntei se no público haveria máquina idêntica. Disseram-me que não. Agradeci e desliguei.
Descobri que havia uma máquina parecida no Hospital do Barreiro. E que o médico, por querer que todos pudessem aceder aos tratamentos teria sido afastado.
Ouvi o meu pai uma vez «para sofrer tanto para poder ter tratamentos mais vale morrer de uma vez. Isto não é vida». Lentamente ia perdendo o seu corpo, a sua mente.
Acompanhava-o nos longos dias de exames, feitos no hospital privado da Boavista porque nenhum hospital público dispunha das máquinas necessárias. Almoçávamos uma francesinha a meio dos tratamentos e víamos coisas para o único neto do meu pai. E voltávamos ao hospital.
Nunca lhe propuseram estar internado. Não lhe deram soro nem morfina, fomos nós que exigimos. Já não aguentava mais ver o sofrimento contínuo do meu pai.
A cadeira articulada, foi emprestada, arranjou-a a minha tia, e uma grade para a cama. O meu cunhado passou a levar e a trazer o meu pai, ele já não conseguia conduzir. A companheira dividia a medicação e aplicava. Aprendi a dar injecções porque a Joana, que é minha amiga e é enfermeira me ensinou, ensinou-me a dar-lhe banho, a virá-lo na cama para que não ganhasse feridas, a limpar-lhe a boca e a alimentá-lo. Tirei licença para estar com o meu pai. A minha irmã não pôde, era um falso recibo verde.
Pedi um empréstimo para poder pagar tudo isto. Tive que mudar de banco e vou pagar o empréstimo nos próximos dez anos. Estive sempre ao lado do meu pai. Colocámos o soro, dei-lhe de comer. Começou a tossir, sem parar. A família reuniu-se em volta dele. O gato, saiu dos pés do meu pai e começou a aproximar-se lentamente do seu peito. E eu pensei, é agora.
Corri para o lado dele, dei-lhe a mão e vi uma lágrima a correr-lhe na face esquerda.
O meu pai morreu.
Não houve jornais, não houve televisão. De vez em quando há uma notícia que diz que os tratamentos estão a ser negados aos doentes oncológicos, que o IPO não tem dinheiro.
O meu pai tinha 54 anos. A vida inteira pela frente.
Nunca defendeu salários baixos nem privatizações. Trabalhou desde os 14. Tirou um curso aos 53 porque era o seu sonho. A estes não há homenagens. Aos que lutam pela sobrevivência durante todos os dias com dores excruciantes e a violência do Estado. Não, para estes não há memória, não há camas de hospital, medicamentos.
António Borges tinha cancro no pâncreas. Daqueles fulminantes que supostamente matam de imediato. Durou bem mais do que o meu pai. «Trabalhou sempre», dizem. Certamente não terá passado por nada disto. Certamente, até na morte, ou perto dela, teve conforto e o melhor tratamento para não sentir dor e adiar a inevitabilidade da morte.
Não lhe sinto raiva pela forma como morreu, mas desprezo o que defendeu em vida. Porque foram homens como ele e são homens como ele que ditam que homens, mulheres e crianças passem o que o meu pai passou para morrer. E ninguém merece estas mortes lentas.
Que lhe pese a terra? Não, não acredito em nada depois da morte. Preferia que lhe pesassem as suas ideias durante a vida. Principalmente nos dias e meses antes da morte." fonte
@ - "Uma radioterapia que pode eliminar o cancro numa única sessão, mesmo com o tumor já espalhado, estará em breve disponível em Portugal, através de uma máquina quase única no mundo que ficará instalada na Fundação Champalimaud." 2011
@ - "Governo paga medicamentos em hospitais privados, que não há nos hospitais públicos?" fonte
- Morrer de cancro sem tratamento
- Vitimas da austeridade
Meu caro
ResponderEliminarEste relato que fez de seu pai, me deixou indignado.
Realmente, estão a transformar Portugal numa América selvagem.
Eles se governam, e querem um povo obediente e merdoso.
Somente quando levarem um susto como quando LIQUIDARAM O FILHO DE CHAMPALIMOU, eles vão recuar.
Mas tinha que ser uns 50 de uma vez só.
Mas isto não vai acontecer, o povo português é covarde, e só gosta de :
- FUTEBOL
- NOVELAS
- FADOS
- FÁTIMA
Estou no Brasil como refugiado económico, e gostaria de acabar meus dias em Portugal.
E vejo que Portugal vai se acabar antes de mim ........ um pena, um país maravailhoso, mas com um povo imberbe e ignorante, que pena.
Abraços
Ramiro Lopes Andrade
Insolito como nos dia's de hoje o "conforto" de uma morte por doença seja dependente da quantidade de cifrões que se possui para assistência!
ResponderEliminarAo que chegamos! Malditas e desumanas sociedades estao-se a formar desprovidas de sensibilidade , solidariedade e vergonha!
Insolito como nos dia's de hoje o "conforto" de uma morte por doença seja dependente da quantidade de cifrões que se possui para assistência!
ResponderEliminarAo que chegamos! Malditas e desumanas sociedades estao-se a formar desprovidas de sensibilidade , solidariedade e vergonha!
Boa noite
ResponderEliminarSenti as lágrimas a queimarem-me as faces, senti a revolta a dar-me a volta ao estômago,
Senti tudo o que relatou porque esta é a realidade dos nossos dias.
Somos miseráveis pisados, espoliados e agredidos diariamente.
Existe sofrimento por não ter pão e sofrimento por ver pão em demasia nas mesas de gente abastada. Existe tanto sofrimento por ter de aceitar as leis que nos descriminam ... que nos fecham as portas dos tratamentos e as gavetas das consultas e medicamentos...
Quais sao os criterios u sados para a publicação de comentários anónimos (nao ofensivos)?
ResponderEliminarO meu comentário nao foi publicado........
Acabei agora de verificar os comentários... por vezes não tenho tempo de ver todos e vou publicando os que posso. Espero que sejam os que aí estão pois não possuo mais em stand by . Peço desculpa pelo atraso...
EliminarMorreu e morreu tarde. Antes não tivera nascido. E que lindo foi ver os canalhas do Bloco Central, P.S. e P.S.D. a aproveitarem a hipótese de se reverem e trocar umas palavrinhas! Comovente.
EliminarMorreu e morreu tarde. Quem dera não ter nascido. E que ternura ver os canalhas do P.S. e P.S.D. a aproveitar a opurtunidade de se reverem e contar os rapinanços que com ele conluiaram à conta do Zé Pacóvio.
EliminarPois nada mais que a dura realidade estampada neste texto que me emocionou bastante. Descobri um cancro no colo do útero ha mais ou menos 1 ano, tumor em estadio II. Fiz quimioterapia, radioterpia e braquiterapia no IPO Lisboa, ate hj faço minhas consultas de seguimento por lá. Nada tenho que me queixar do hospital, o tratamento foi 5 estrelas e os medicos, enfermeiros, enfim todos os funcionários foram muito humanos, dedicados. Após os tratamentos voltei a vida normal, tinha um emprego. Acontece que 6 meses depois dos tratamentos tive uma complicação no intestino. Fui internada 2 vezes no IPO e como acumulei 3 longas baixas meu contrato não foi renovado na empresa. Disseram me que não podiam ter nos quadros um funcionário que pudesse entrar de baixa a qualquer momento. Eu ter ido trabalhar 2 dias após minha última sessão de quimioterapia, ter feitos várias horas extras pq eles precisavam de alguém para estar nas lojas, ter ido trabalhar muitas vezes passando muito mau deixou de ter importância para eles, após 3 contratos não faço mais parte da empresa. Agora é tentar ir para o fundo desemprego e pedir a Deus que me ajude a encontrar trabalho nos próximos meses. Uma vez que temos cancro todas as portas começam a se fechar. Lamentável, tenho apenas 29 anos.
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