A insaciável tentação de controlar
José Sócrates tinha algo a esconder. Quis “partir a espinha ao Ministério Público”, controlar jornais e televisões, influenciar grandes empresas. Ele nega tudo. Mas deve o PS fazer um ato de contrição?
Episódio um
“É preciso é partir a espinha ao Ministério Público, para alguma coisa isto deve dar gozo…”, desabafou José Sócrates, já perto da escadaria da residência oficial de São Bento, quando conduzia a delegação do PSD à porta do palacete, segundo a memória de Paula Teixeira da Cruz, então vice-presidente do PSD.
Episódio dois
Há decisões que deixam rastos de milhões e que continuam a produzir efeitos 16 anos depois de tomadas. Em julho de 2005, quatro meses após tomar posse como ministro das Finanças, Luís Campos e Cunha demite-se através de uma carta, encontrada nas buscas à casa de José Sócrates, alegando uma “pressão sistemática” do primeiro-ministro para substituir a administração da Caixa Geral de Depósitos. Em 2019, 14 anos passados, o ex-ministro revela numa comissão de inquérito, que lhe eram “sugeridos os nomes de Carlos Santos Ferreira e de Armando Vara” para a nova administração do banco. Teixeira dos Santos havia de os nomear assim que entrasse nas Finanças, assumindo mais tarde não só a total responsabilidade pela escolha dos nomes, como garantindo que Sócrates até lhe fez um “reparo” pelo “ruído mediático” que “politicamente” ia gerar a escolha de Vara. Esse ruído continua a ouvir-se até hoje. Nessa época, a Caixa perdeu mais de mil milhões em projetos prioritários do Governo (só o ano de 2007 representa 40% das imparidades) e alavancou um empresário chamado Joe Berardo com centenas de milhões de euros em créditos, que também tinha em Sócrates um aliado: criou-lhe uma Fundação e cedeu-lhe o CCB para a coleção de arte moderna. A CGD financiou Berardo (e outros) para comprar ações do BCP no âmbito da luta pelo poder no Millennium, e a fação que ganhou a guerra escolheu os mesmos Santos Ferreira e Vara, para a nova administração. Arrependimentos “guardo-os comigo” diria Teixeira dos Santos na última comissão parlamentar de inquérito à Caixa.
A CORRUPÇÃO NÃO TEM BARREIRAS NEM LIMITES EM PORTUGAL
Um eco daquela época no presente foi a detenção, este mês, de Joe Berardo e a constituição como arguido de Carlos Santos Ferreira por gestão danosa na CGD. Armando Vara está a cumprir cinco anos de prisão por tráfico de influências numa rede que favorecia sucateiros, no âmbito de outro processo, o Face Oculta. A aguardar julgamento por crimes como branqueamento de capitais — e à espera da apreciação do Tribunal da Relação sobre os crimes de corrupção que a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa anulou —, José Sócrates continua a ser responsabilizado politicamente por muitas destas decisões.
Episódio três
O jornalista Afonso Camões — ex-presidente da Lusa e hoje secretário-geral da Global Media, que detém o “Diário de Notícias”, “Jornal de Notícias” e a TSF —, ter-se-á apresentado como emissário do Grupo Lena para sondar Mário Ramires, então diretor-adjunto do “Sol”, para a compra do jornal. O encontro terá ocorrido no dia 28 de dezembro de 2008, ao fim da tarde, no Pabe, restaurante histórico ao lado das antigas instalações do Expresso na rua Duque de Palmela, em Lisboa, onde ambos tinham trabalhado. Em nome do grupo liderado por Joaquim Barroca — um dos alegados corruptores de Sócrates segundo o Ministério Público, acusação que o juiz Ivo Rosa deixou cair, mas de que o Ministério Público (MP) recorreu —, Camões terá sugerido um negócio generoso, mas na condição de a direção ser afastada. Afonso Camões, que nas escutas do processo Face Oculta se assumiu perante Sócrates como um “general prussiano que nunca se amotina”, nega que tenha acontecido esse encontro, até porque nessa altura estava na Controlinveste. “Nunca ouvi falar nessa história”, diz o antigo jornalista. “Não tenho nada a ver com isso, não faço nenhuma ideia disso nem porque é que me querem pôr nesse romance.” Depois de duas fontes terem veiculado esta informação ao Expresso e de Camões a ter negado, o Expresso contactou José António Saraiva, ex-diretor do “Sol”: a proposta existiu, foi encarada com “indignação” pelos diretores do jornal e “liminarmente rejeitada”, diz.
CULPADO DISTO TUDO?
Uma dúzia de anos depois, ainda há episódios nebulosos e mal explicados, como este, sobre os tempos da governação de José Sócrates, a que se seguiu outro: um mês depois desta alegada proposta do Grupo Lena sobre o “Sol”, o BCP Capital, de que Armando Vara também era agora administrador, informou Joaquim Coimbra — o acionista maioritário do jornal — de que “não deixaria de exercer o direito de preferência se assim o entendesse” sobre as suas ações (prestes a serem vendidas a angolanos). Isto consta do depoimento de Coimbra num inquérito da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e aconteceu numa fase em que o BCP estava vendedor da sua participação. Quase em simultâneo, dar-se-iam as alegadas ameaças que a direção do jornal haveria de denunciar, por parte de alguém próximo de Sócrates cujo nome nunca foi revelado: a saúde financeira do jornal, altamente endividado ao BCP e ao BES, dependeria da manchete seguinte. Cavaco Silva chamará José António Saraiva a Belém para lhe dizer que sabe da intenção do BCP para comprar e fechar o “Sol”, conta o ex-diretor. Mas isso jamais aconteceria. A ERC abre uma averiguação, ouve toda a gente, e conclui pela inexistência de tentativas de influenciar politicamente o jornal.
Como estes, há outros acontecimentos que, passados dez anos ou mais, ainda não são completamente claros. O tema da governação de José Sócrates regressou em força depois do despacho de pronúncia do juiz Ivo Rosa, que deixou cair os crimes de corrupção apontados pelo MP, mas que o acusou de “mercadejar” o cargo com o amigo e financiador Carlos Santos Silva. Nas últimas semanas, a detenção de Berardo foi outro gancho para o ex-primeiro-ministro voltar a ser alvo de comentários televisivos, artigos e editoriais: reapareceu Armando Vara, o tema dos créditos ruinosos da CGD, e as tentativas de controlo dos vários poderes. Luís Marques Mendes, que nos idos de 2007 repetia estes argumentos nos debates mensais no Parlamento, foi dos mais violentos, no seu programa da SIC, quando comentou a detenção de Berardo: “Não podemos esquecer as responsabilidades políticas. Tudo isto aconteceu por causa de Sócrates. Era primeiro-ministro e deu cobertura e incentivo a tudo isto. Tinha um projeto de poder pessoal, não do PS, mas pessoal, que passava por controlar a comunicação social, controlar a banca e controlar a Justiça”, diz aquele que foi seu adversário entre 2005 e 2007. “E por isso aconteceram todos estes negócios ruinosos” — continuou — “o assalto ao
BCP, a tentativa de compra da TVI... Responsáveis criminais há vários, responsáveis políticos há um.”
O Expresso questionou José Sócrates sobre estes temas e o ex-primeiro-ministro aceitou responder por escrito. As perguntas e as respostas seguem a itálico ao longo deste texto.
Como responde aos que o acusam de ter desenvolvido um “projeto de poder pessoal”, a que Marques Mendes se referiu, através de uma tentativa de controlo da comunicação social, da banca, grandes empresas como a PT e condicionamento da Justiça?
As perguntas do Expresso não têm outra intenção senão a de dar, de novo, expressão pública a dois embustes históricos fabricados na imprensa pela direita portuguesa. O primeiro foi criado com a ideia de que o Governo de então estaria detrás da tentativa da PT de comprar a TVI. Tal alegação é absolutamente falsa. Ela foi alimentada através da perversa instrumentalização política de escutas num inquérito criminal dirigido pelo irmão da senhora procuradora Marques Vidal e que foram, no final, consideradas sem nenhuma relevância criminal pelo senhor procurador-geral da República e pelo senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça. A manobra acabou abortada.
E quanto à compra do semanário “Sol” por acionistas não hostis?
Quanto ao semanário “Sol” nem sei do que estão a falar. A alusão é apenas estapafúrdia. Todavia, a este propósito, lembro o recente relato feito pelo anterior diretor: “o Presidente da República chamou-me a Belém para se informar do que estava a acontecer, e à saída disse-me, enquanto me apertava demoradamente a mão: ‘Não desista!’ Chamou-o a Belém e queria informações. Na verdade, esta sempre foi a mão por trás dos arbustos.
“Não acho que haja a menor condição para se fazer uma avaliação desse tempo histórico”, assume ao Expresso Francisco Assis, hoje presidente do Conselho Económico e Social, que foi líder parlamentar no segundo mandato de José Sócrates e candidato à liderança do PS na sua linha de sucessão. Assis prefere ver o foco na necessidade de uma discussão partidária aberta, para uma “democracia interna com mecanismos de escrutínio” e de combate à “cultura do caciquismo”. Mas não deseja um regresso ao passado. Para o médico socialista Álvaro Beleza, hoje presidente da SEDES (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social) — e antigo apoiante de António José Seguro —, “o grande problema político de Sócrates foi o exagero”. Exacerbou quase tudo, desde o poder conferido pela maioria absoluta até aos gastos que conduziram à quase falência do Estado. “Não respeitou a ética republicana de que o PS é herdeiro. A ética republicana é de serviço público, não nos servimos a nós próprios e Sócrates é um exemplo claro em que isso não foi seguido.”
Insuspeito de simpatias socialistas, Nuno Garoupa, professor na Universidade George Mason, Washington, nos Estados Unidos, adverte que, “olhar para o passado com os olhos do presente gera um enviesamento” para se “reescrever a história”, podendo concluir-se facilmente que Sócrates “queria concentrar imenso poder”. Mas Nuno Garoupa olha para lá das circunstâncias e aponta para uma fragilidade genérica das instituições portuguesas: “O grande problema é o fracasso das nossas instituições, que não estão preparadas para que isso não aconteça”. Partidos, Justiça, reguladores...
ACUSAÇÕES DE MINISTROS INDIGNAM JUDICIÁRIA
Perante todas as notícias que o atingiram, José Sócrates reagiu sempre indignado. Os socialistas, que como todos os militantes gostam de líderes ferozes e combativos, reagiam com a mesma indignação. “Uma campanha de calúnias”, foi como Augusto Santos Silva, então ministro dos Assuntos Parlamentares, comentou as notícias sobre as suspeitas de irregularidades na licenciatura do líder, em 2007. Defendeu Sócrates sempre e em todos os momentos, como “um leão”. Foi o “cão de guarda” do primeiro-ministro e do Governo, reconheceu este mês numa entrevista à Revista E do Expresso. Ao fim de quatro anos de “combate político” diário como ministro dos Assuntos Parlamentares na defesa de Sócrates, tinha “destruído deliberadamente” a sua “imagem social”.
Não foi o único, nesses anos, a mostrar os dentes para proteger o chefe. Em 2009, José António Vieira da Silva reagia como outro guardião às polémicas escutas do Face Oculta, que apanharam Armando Vara em conversas com José Sócrates sobre a tentativa de compra da TVI por parte da Portugal Telecom, e que mais tarde seriam consideradas inócuas e destruídas por ordem do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento: “O que motiva essas forças e essas pessoas, não é qualquer investigação em relação a qualquer processo de corrupção, mas aquilo a que podemos chamar de espionagem política”, atirou na Antena 1, o então ministro do Trabalho. Chegou a ser chamado ao Parlamento para dar explicações. Mais do que rosnar, Augusto Santos Silva também ferrava os dentes na investigação e reforçava que as escutas tinham sido feitas em “flagrantíssima violação da lei”.
José Sócrates e Joe Berardo. O então primeiro-ministro reunia-se e negociava com o empresário para instalar, em junho de 2007, a sua coleção de arte moderna no Centro Cultural de Belém
Sócrates com Armando Vara, uma amizade antiga e que está no centro de vários processos judiciais
Pedro Delgado Alves, um socialista que considera ter chegado a hora de ajustar contas com o passado — defende “um processo de autocrítica relativamente ao que correu mal e não pode voltar a correr” e que o partido “deve encarar os fantasmas cara a cara para a democracia se proteger”
Pinto Monteiro foi procurador-geral da República e viveu de perto alguns dos processos que envolveram o primeiro-ministro José Sócrates
Estas declarações de ministros do núcleo duro, foram entendidas como pressões pelos agentes judiciais e levaram Teófilo Santiago — então diretor da Polícia Judiciária de Aveiro —, a escrever ao diretor nacional da PJ, contra aquelas “injúrias” com um grau de “indignação” ainda maior, por se sentir visado pelo poder político: “Não é sustentável nem admissível, seja em que circunstancialismo for, que pessoas com responsabilidades públicas, maxime governantes, acusem (nos acusem) de, a coberto daquela investigação, ter sido feita ‘espionagem política’ com ‘utilização de meios ilegais’!!!” E pediu que a direção nacional fizesse um “inquérito criminal” para apurar eventuais “ilícitos”, segundo essa carta a que o Expresso teve acesso.
Vieira da Silva não está arrependido destas declarações, e contextualiza ao Expresso: “A essência da minha reação tinha que ver com o que se transformou numa norma, a publicação de peças que estavam em segredo de Justiça e expliquei isso na Assembleia da República”. O ex-ministro — que em abril manifestou “desgosto” com a história das entregas de dinheiro vivo a Sócrates —, “não tinha noção” que as suas palavras tinham tido como consequência aquela carta do investigador ao diretor nacional da PJ. “Ninguém me mandou fazer aquilo”, assegura. E relativiza as acusações sobre as tentativas de controlo dos poderes, recordando que também as houve noutros Governos, como as pressões do tempo do cavaquismo com a frase “deixem-me trabalhar” com que Cavaco brindava os contrapoderes da sua maioria absoluta.
JUSTIÇA: UMA ESPINHA CRAVADA NA GARGANTA
“Partir a espinha ao Ministério Público”, como Paula Teixeira da Cruz diz ter ouvido Sócrates proferir na reunião para o pacto para a Justiça poderia significar apenas dificultar as escutas ao primeiro-ministro, membros do Governo, a deputados. Os socialistas queriam que as escutas a estes políticos também fossem autorizadas por um tribunal superior, como já acontecia com o Presidente da República, e não por meros juízes de instrução. O PSD aceitou apenas a parte das escutas que respeitava ao primeiro-ministro, uma decisão que teria efeitos no futuro... e o pacto seguiu (ambos os partidos concordaram então em criminalizar os jornalistas pelas violações do segredo de Justiça). José Sócrates nega que tenha feito aquele comentário:
Recorda-se de ter dito, no fim de uma reunião com Paula Teixeira da Cruz e Marques Mendes, que “é preciso partir a espinha ao Ministério Público”?
Finalmente, a miséria moral. Só ela explica que os dois personagens que refere sejam capazes de tamanha intriga e tamanha mentira. Nunca pronunciei essa frase — nem nenhuma outra que pudesse ser assim interpretada — nem em privado e muito menos em público.
Mesmo sem autor conhecido, a frase ganharia vida. António Cluny, então presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, faria título de uma entrevista ao “Sol” com essa citação em 2009, referindo-se à existência de um membro do Governo que ameaçava “partir a espinha aos magistrados”. Em 2011, João Palma, que lhe sucedeu no cargo, insistia na ideia de que um governante ameaçara o MP, dizendo: “Até a espinha lhes hei de partir.” Na verdade, o nome de Sócrates ia aparecendo em múltiplos casos que o desgastaram ao longo dos anos, mas sem consequências penais: Cova da Beira, licenciatura, Freeport, Face Oculta, Monte Branco, assinatura de projetos de casas. Nunca passou de suspeito, testemunha ou nem isso. Um membro desses governos diz ao Expresso que essas notícias iam sendo internamente desvalorizadas a partir de “uma leitura contaminada pelo caso Freeport”, que foi manchete pela primeira vez em “O Independente” na véspera de Sócrates ganhar a maioria absoluta em 2005. Veio a provar-se mais tarde que a investigação e a notícia tinham começado com uma conspiração do PSD, a partir de um assessor de Pedro Santana Lopes, a “campanha negra” que Sócrates nunca deixou de denunciar.
Mas eis que se deu o chamado ‘caso Lopes da Mota’. Desde janeiro de 2009 que a TVI voltara à carga com o Freeport no “Jornal de Sexta”, apresentado por Manuela Moura Guedes, que culminará, em abril desse ano, com a divulgação do célebre DVD de Charles Smith a dizer ao administrador do Freeport que Sócrates tinha sido subornado (mais tarde, o mesmo Smith dirá a investigadores ingleses que inventara a história). Em março desse ano, enquanto o assunto está quente, os procuradores responsáveis pela investigação, Vítor Magalhães e António Paes Faria, almoçam com o procurador português no Eurojust, José Lopes da Mota — ex-secretário de Estado de um Governo do PS. É o único caso reportado de pressões diretas sobre a Justiça, dado como provado através de um processo disciplinar a Lopes da Mota que será suspenso durante um mês, depois de apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Segundo o acórdão, Lopes da Mota disse aos procuradores, “em tom sério e de aviso, que tinha estado reunido, na véspera, com o ministro da Justiça”, e que Alberto Costa se mostrara “preocupado com a morosidade do processo” e com a “gestão política dos tempos” da investigação. Mais do que isso, o ministro esperava que não fizessem uma gestão política“ da investigação, porque as eleições estavam próximas” e que tivessem cuidado. “Não tinham a confiança do PGR nem da diretora do DCIAP” e José Sócrates estava “muito preocupado com a evolução e andamento do processo”, pelo que “se o PS viesse a perder a maioria absoluta iria haver retaliações e alguém pagaria caro”, teria dito o ministro.
Alberto Costa nega até hoje que tenha tido essa conversa com Lopes da Mota. “O que disse nessa altura é o que mantenho hoje”, reafirma o ex-ministro socialista ao Expresso, que também acha ser extemporâneo fazer uma autocrítica em relação a esse tempo: “Estamos a abordar uma matéria que releva da história” e “avaliar essa realidade em virtude de factos subsequentes [como a acusação de Sócrates] não é politicamente aplicável.”
Na fase final do inquérito, os investigadores do Freeport tiveram de lidar com um prazo limite de um mês para concluírem o processo, que se arrastava há anos. Fernando Pinto Monteiro, o ex-PGR diz ao Expresso que a questão dos prazos foi da responsabilidade de Cândida Almeida, então diretora do DCIAP, o departamento dos casos mais complexos: “O chamado caso Freeport foi investigado, como é sabido, no DCIAP, tendo a partir de certa altura tido dois procuradores encarregados da investigação, que foi o mais exaustiva possível. O prazo legal foi largamente ultrapassado e se mais prazo não foi concedido, foi porque tal não foi requerido.” No fim, os procuradores seriam alvo de um processo disciplinar — conjuntamente com Cândida Almeida, diretora do DIAP — entretanto arquivado, “para o integral esclarecimento de todas as questões de índole processual ou deontológica”, e pelas 27 perguntas nunca realizadas a Sócrates, por alegada falta de tempo, que foram divulgadas com o despacho final. Todos os crimes relacionados com corrupção no caso Freeport seriam arquivados, dois dos sete arguidos acabaram por ser acusados de extorsão, mas foram absolvidos em julgamento.
Com Santos Silva e Vieira da Silva. Dezasseis anos depois de ter conquistado a única maioria absoluta para o PS, o chefe antes idolatrado pelas bases está fora do partido, os seus cães de guarda dizem-se desiludidos, são raros os que ainda o defendem e os socialistas não parecem dispostos a avançar para uma reflexão profunda sobre a era socrática.
Memória Com Santos Silva e Vieira da Silva. Dezasseis anos depois de ter conquistado a única maioria absoluta para o PS, o chefe antes idolatrado pelas bases está fora do partido, os seus cães de guarda dizem-se desiludidos, são raros os que ainda o defendem e os socialistas não parecem dispostos a avançar para uma reflexão profunda sobre a era socrática
JOÃO CARLOS SANTOS
Os dois procuradores chegaram a queixar-se de serem vigiados pelos serviços secretos durante a investigação, mas nada se provou. No entanto, no seu livro “Ao Serviço de Portugal” (2018), o antigo ‘superespião’, Jorge Silva Carvalho, escreveu que quando era diretor do Serviço de Informações Estratégicas e de Defesa (SIED) foi chamado ao gabinete de Júlio Pereira, então diretor do Sistema de Informações da República (SIRP), que estava preocupado com o pedido de informações à polícia inglesa sobre os promotores do Freeport. E pediu-lhe para falar com os serviços secretos britânicos MI6, porque se tratava de informações sobre o primeiro-ministro português. Júlio Pereira ter-lhe-á dito que era preciso intervir nos bastidores do Freeport: “Respondi que não ia fazer rigorosamente nada”, escreveu Silva Carvalho no livro, e acrescentou ter percebido ali que as pessoas “não conseguiam ser imunes à pressão política”.
De resto, várias fontes do MP convergem numa tese: havia visados em casos politicamente relevantes que iam sabendo o que se passava em processos. Por exemplo, durante a investigação do Face Oculta, o diretor da PJ de Aveiro, Teófilo Santiago, chegou a mandar um ofício ao PGR a queixar-se de fugas para os suspeitos dias depois de essa informação ter chegado à PGR em Lisboa. Tudo porque a Polícia Judiciária detetou uma escuta entre dois socialistas (Paulo Penedos, entretanto condenado, e Rui Pedro Soares, administrador da PT) “plantada” para “baralhar a investigação” à compra da TVI pela PT. O investigador comunica então a Pinto Monteiro que o segredo do processo está comprometido: “Não me restam dúvidas que os intervenientes suspeitam, direi mesmo sabem, haver uma investigação em que existem escutas e que eles serão visados, o que só será possível se tiverem acesso a informação confidencial e protegida por segredo de Justiça”, escreveu a 26 de junho de 2009. Nunca se apurou de onde essas fugas saíram. Pinto Monteiro considerará essas desconfianças “insultuosas”.
Também nunca foi investigada, criminalmente, a tentativa de compra da TVI pela PT, com o objetivo de mudar a linha editorial da estação, apesar da insistência da Judiciária e dos procuradores de Aveiro. Em meados de 2009, Teófilo Santiago escreve outra vez ao procurador-geral a dizer que as escutas do processo Face Oculta revelam a tentativa de comprar “de forma encapotada”, uma “posição dominante em órgãos de comunicação social” que são “hostis” aos interesses do Governo, de modo a “os controlar e inverter a atual linha editorial que entendem ser-lhes adversa”. Os investigadores nunca terão cobertura do PGR para avançar contra Sócrates com base no crime de “atentado ao Estado de direito”. As escutas das conversas de Sócrates com Vara acabam destruídas por ordem do Supremo, efeito da alteração legal do pacto para a Justiça de 2007, acordado com o PSD.
Pinto Monteiro assinará um despacho, de 26 páginas, a admitir que o “Jornal de Sexta”, da TVI, e o “Público” terão, “eventualmente, sido objeto de pressões no sentido de não adotarem uma linha editorial hostil ao Governo”. Mas ficava por ali. Ainda que tivesse havido “interferência”, isso não pode, porém, confundir-se com “comportamentos criminalmente puníveis”, escreveu. Numa entrevista ao Expresso, já em abril deste ano, o antigo investigador Teófilo Santiago põe no ex-procurador-geral o ónus da decisão que poupou Sócrates: “Não fui só eu a considerar que havia indícios de crime. Fui eu, o coordenador do DIAP, o juiz de instrução e o procurador distrital de Coimbra. Não estávamos todos perturbados, não é? E não foi nada investigado. Não fiquei surpreendido. Já me surpreendo com pouco.”
“É preciso partir a espinha ao Ministério Público” é a expressão atribuída a Sócrates. “Nunca pronunciei essa frase”, garante o ex-primeiro-ministro
Fernando Pinto Monteiro nunca se livrou da reputação de proteger José Sócrates: depois de sair do cargo foi ao lançamento do primeiro livro do ex-primeiro-ministro, e chegou a almoçar com ele antes de este ser detido no âmbito da Operação Marquês, sem fazer ideia do que estava para acontecer. “O que parte da comunicação social, com o apoio de partidos políticos e larga faixa da opinião pública pretendiam era a prisão de Sócrates”, diz hoje o ex-PGR ao Expresso. “Sou magistrado desde os 23 anos e cedo aprendi que para alguém ser preso é preciso fortes probabilidades de ter cometido o crime. É assim no Estado de direito e muito me preocuparia saber que em Portugal esse princípio fundamental deixou de ser cumprido.” Pinto Monteiro aponta o dedo a uma “campanha que existiu na altura” e que “pretendia também afastar o procurador-geral da república, que era conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e, como tal, vindo da magistratura judicial e alheio aos interesses corporativos e aos interesses de poderosos grupos económicos, políticos e sociais”.
Várias fontes do MP contactadas pelo Expresso sublinham que a escolha para procurador-geral recaiu sobre uma pessoa que tinha um perfil pouco preocupado com os crimes de colarinho branco e que dizia em entrevistas que a corrupção predominante em Portugal era pouco mais do que a do “cafezinho” e do “tome lá uns euros para fazer andar”. Ao fim de quatro anos de mandato de Pinto Monteiro, Cavaco Silva fazia esta avaliação, segundo o seu livro de memórias presidenciais “Quinta-feira e Outros Dias”: “Era forçado a concluir que não tinha sido alcançado o objetivo expressado: um MP empenhado na defesa da legalidade e eficaz no exercício da ação penal, atuando com exigência, discrição e responsabilidade de Estado.”
Passados estes anos todos, foi-se pondo a questão sobre o que fez a seguir Joana Marques Vidal de diferente. Fontes do MP convergem para dizer que a ex-procuradora encontrou as pessoas absolutamente “desmotivadas” e que com maior coordenação os magistrados terão passado a sentir “mais cobertura nas questões complicadas” do que tinham antes. Leia-se, nos processos que envolviam os poderosos. “Obviamente, e por uma questão de ética, não falarei da atuação da minha sucessora”, diz Pinto Monteiro ao Expresso. “Enquanto fui PGR, foi investigado tudo o que chegou a conhecimento da Procuradoria e que merecia ser investigado. Como é sabido, o PGR não investiga, manda investigar, coordena a investigação. Nunca deixei de mandar fazer qualquer investigação sobre factos que chegassem à Procuradoria e que estivessem dentro da sua competência”, justifica.
BANCA E NEGÓCIOS: UM DESASTRE E UM BURACO
O episódio da ida de Armando Vara para a administração da Caixa liderada por Carlos Santos Ferreira é hoje visto como um dominó de milhões. A venda da brasileira Vivo, na PT, e a compra da brasileira Oi, com a cumplicidade dos Governos dos dois lados do Atlântico, destruiu a joia da coroa das telecomunicações portuguesas. Outro dominó. Nas suas memórias, Cavaco Silva subscreveu a tese da tentativa de controlo do poder económico por parte de Sócrates: “Embora não tivesse ainda completado um ano do meu mandato, diversos gestores me tinham já feito chegar a mensagem de que nunca se tinha verificado tanta interferência do Governo na vida das grandes empresas.” Cavaco faria outra acusação: estava convencido de que o primeiro-ministro ia fazer tudo “sem olhar a meios, para ganhar as eleições e conservar a maioria” nas legislativas de setembro de 2009: “O controlo e a manipulação da comunicação social de cuja fama não se livravam e a pressão sobre empresários — fragilizados pelo seu grau de endividamento — seriam certamente coisas que iriam ser utilizadas.” Fernando Ulrich, presidente do BPI, diria numa entrevista ao “Jornal de Negócios”, em 2010, que a fusão com o BCP só não se dera por interferência do poder político: “Posso perceber que era para ter o doutor Armando Vara e o que isso significa no conselho do BCP. A minha leitura da operação não se ter feito foi porque o poder político em Portugal não quis. Não vamos ter ilusões, o poder político em Portugal nestas grandes operações tem um papel.”
Em 2007, a Caixa, sob a gestão de Santos Ferreira, Armando Vara e Francisco Bandeira, teve “indiscutivelmente” o “pior ano da história recente” em termos de imparidades, conta a jornalista Helena Garrido no livro “Quem Meteu a Mão na Caixa”. Há pelo menos três casos que, passados todos estes anos, ainda fazem sentir os seus efeitos: La Seda, Vale do Lobo e o financiamentos para compra de ações do BCP. No caso La Seda, a Caixa foi além dos limites na cobertura dada aos célebres PIN (Projeto de Interesse Nacional) promovidos por Manuel Pinho, então ministro da Economia — que está a ser investigado por alegadamente ter continuado a receber dinheiro proveniente do BES, onde fora administrador, enquanto exercia funções governativas.
“O meu Governo sempre respeitou a autonomia de gestão da administração da Caixa Geral de Depósitos”, assegura José Sócrates
Tratava-se de um projeto vendido ao público como “investimento estrangeiro”, uma empresa catalã de um acionista português (Matos Gil) que também esteve ligado ao Grupo Espírito Santo. A Caixa Banco de Investimento chegou a classificar como “inviável” o projeto La Seda, que ambicionava tornar-se uma potência dos plásticos e embalagens em Sines. No entanto, o que era uma “charlatanice” para o banco de investimento da CGD era essencial na administração da Caixa, segundo o livro de Helena Garrido. O PIN passaria de “inviável” a “viável” depois de um almoço dos acionistas com alguns administradores da CGD, escreveria a jornalista, com aval do Governo, cujo Conselho de Ministros aprovou um incentivo de €99 milhões. José Sócrates classificava o projeto como “um investimento para colocar Portugal na rota e no mapa da economia global e do sector petroquímico e que se destina a vender para todo o mundo e fazê-lo com valor acrescentado”. Não aconteceu assim. A CGD ficou com um buraco de quase mil milhões de euros, por se ter tornado ao mesmo tempo acionista e financiadora da empresa. Tal como o PIN falido da Pescanova, o projeto La Seda era vendido como “investimento estrangeiro”, mas na realidade era financiado com dinheiro e recursos nacionais. A autora de “Quem Meteu a Mão na Caixa” deixa a pergunta: a CGD não se poderia opor a financiar um projeto que um Governo classifica como sendo de interesse nacional? Mesmo que houvesse riscos de “crime?” Os gestores da Caixa, porém, nunca se sentiram pressionados pelo poder político segundo as múltiplas declarações públicas dos antigos administradores. E Sócrates garante que nunca os pressionou.Reconhece responsabilidades políticas em negócios que correram mal como os Projetos de Interesse Nacional da Pescanova e La Seda — e respetivos reflexos na Caixa?
O meu Governo sempre respeitou a autonomia de gestão da administração da Caixa Geral de Depósitos e nunca interveio em matérias que eram da competência da administração do banco — e, em consequência, da sua responsabilidade. O Parlamento já fez duas comissões de inquérito e ouviu dezenas e dezenas de testemunhas. Pois bem, em nenhum momento se ouviu alguém dizer que eu ou o ministro das Finanças, que tutelava essa área política, alguma vez tenhamos tentado intervir nesses assuntos, dando orientações ou fazendo sugestões. Essas alegações foram desmentidas por todos os que prestaram declarações. E não, nunca falei com Armando Vara, do qual era e continuo amigo, de qualquer financiamento bancário.
O segundo embuste diz respeito ao que a imprensa costuma chamar de “assalto ao BCP”. Esta história é completamente inventada. Nunca – repito, nunca- orientei, sugeri ou discuti com qualquer acionista do banco comercial português as escolhas a fazer para a sua administração. Nunca foi do meu conhecimento que a Caixa tenha decidido conceder crédito a acionistas do BCP nem tal assunto foi alguma vez discutido dentro do governo ou entre mim e o Ministro das Finanças.
O empreendimento algarvio de Vale do Lobo, que Armando Vara classificará na comissão de inquérito à gestão da CGD como um projeto que assentava “como uma luva nos projetos prime” que os administradores queriam para o banco público, valerá a Sócrates uma das acusações de corrupção que o juiz Ivo Rosa considerou irrealistas e que deixou cair. Tal como no caso La Seda, a Caixa avançou com €300 milhões ao longo de três anos, concedeu crédito e tornou-se acionista e, segundo Helena Garrido, ignorou ou contornou os pareceres da Divisão de Risco e desrespeitou as decisões do Conselho de Crédito. Na Operação Marquês, o Ministério Público acusará Vara de ter “violado as suas obrigações funcionais” enquanto administrador da CGD.
Nesse tempo, enquanto a administração da Caixa dava luz verde a centenas de milhões de créditos para a compra de ações do BCP a Joe Berardo — e a outros como Manuel Fino ou Teixeira Duarte —, o primeiro-ministro reunia-se e negociava com o empresário para instalar, em junho de 2007, a sua coleção de arte moderna no Centro Cultural de Belém. A decisão foi controversa e também causou muito “ruído”. A assinatura do primeiro protocolo entre o Estado e a Associação Coleção Berardo e o primeiro crédito para comprar ações do BCP aconteceram no mesmo mês, em abril daquele ano, avançou o “Observador” em 2019. Sócrates negaria qualquer ligação entre os dois momentos. Mas o MP está a investigar se o acordo beneficia o colecionador e prejudica o Estado, até porque é esse contrato que impede os bancos (Caixa, BCP e BES) de acionarem as obras de arte como garantia da gigantesca dívida global de Berardo, superior a mil milhões de euros. Cavaco Silva promulgou o decreto que criava a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea, mas com dúvidas: um parecer de juristas da Casa Civil dizia, segundo o “Observador”, que o acordo levava “longe de mais o reconhecimento dos interesses do colecionador José Berardo, com prejuízo dos interesses do Estado” através de cláusulas “altamente obscuras”, “singulares” e “controversas”. Sócrates diria ao mesmo jornal, em 2019, não ter tido conhecimento desses pareceres, mas Nunes Liberato, chefe da Casa Civil do Presidente garantiu que estes “foram comunicados ao gabinete do primeiro-ministro, como era normal” e conta que teve “contactos intensos” com Pedro Silva Pereira, então ministro da Presidência, sobre o assunto.
Nunca se deu conta da posição em que ficava o Estado quando criou a Fundação Berardo — cujo primeiro protocolo coincide no tempo com os financiamentos da CGD —, apesar do parecer dos assessores jurídicos de Belém, que o chefe da casa Civil garante ter mandado para São Bento?
A única reunião de trabalho que tive com o senhor Joe Berardo decorreu no meu gabinete, a pedido da então ministra da Cultura, para discutir a possibilidade de um acordo entre o Estado e a Fundação Berardo para que a sua coleção fosse exposta no Centro Cultural de Belém. Não acompanhei o desenrolar das negociações, que decorreram no respetivo Ministério da tutela. Quero reafirmar que nunca tive conhecimento, fosse por quem fosse, do empréstimo que este negociou com a Caixa Geral de Depósitos para reforçar a sua posição acionista no Banco Comercial Português, assim como não tive conhecimento de que a Caixa ou o restante sector financeiro realizassem empréstimos tomando como garantias ações de bancos. Também não tenho conhecimento de qualquer parecer da Presidência da República a propósito deste acordo. A única motivação do Governo foi a de conseguir um novo museu com a melhor coleção de arte contemporânea existente no país e que se encontrava, na altura, encaixotada. O que não é novo, neste caso, é a mão que continua por trás dos arbustos.
Como comenta a detenção de Joe Berardo?
Relativamente ao senhor Joe Berardo vem a propósito fazer um breve comentário sobre o espetáculo mediático da detenção do empresário, que é válido também para Luís Filipe Vieira. Na verdade, tudo é idêntico ao que vimos no passado. Tudo insuportavelmente idêntico. O mesmo desprezo pelo valor da liberdade, o mesmo abuso das autoridades, a mesma campanha de difamação do visado construída com base na violação do segredo de Justiça e na cumplicidade do jornalismo. A detenção para interrogatório passou a ser instrumento de violência, não de justiça. Usada fora da lei, usada para humilhar, usada para prender primeiro e só depois perguntar, transforma a presunção de inocência em presunção pública de culpabilidade. O direito penal vai assim progredindo por transgressões. Se violarmos as normas muitas vezes, as pessoas acostumam-se. Todo o espetáculo que vimos nas televisões é baseado no abuso e no crime — no abuso da detenção e no crime de violação do segredo de Justiça, que é agora um privilégio estatal, um crime institucional. No final, insistem em chamar a isto um processo justo.
Outros casos, que estiveram em investigação anos na Operação Marquês, têm diretamente a ver com o alegado nível de controlo por parte do primeiro-ministro: o chumbo da OPA da Sonae à PT, e depois a venda da Vivo no Brasil com a posterior entrada no capital da brasileira Oi. No caso do chumbo da OPA à Telecom, o Estado garantiu a neutralidade, com uma abstenção documentada por um despacho do secretário de Estado do Tesouro. Outra questão era a CGD, que votou contra a operação. Na véspera da Assembleia Geral de março de 2007, o “Jornal de Negócios” publicava uma manchete: “Governo manda Caixa travar OPA”. Mas os envolvidos jamais o admitiriam. E Armando Vara votaria contra, em nome do banco público, enquanto o Estado se abstinha com a golden share. A eventual influência do Governo foi sempre negada por Sócrates. O juiz Ivo Rosa também deixou cair todas as acusações relacionadas com este caso, de que Ricardo Salgado teria corrompido Sócrates para o Governo inviabilizar a OPA da Sonae à Telecom.
Três anos depois, quando a espanhola Telefónica quis comprar a brasileira Vivo — a melhor fonte de resultados da PT —, José Sócrates quis, aí sim, que o Estado usasse pela primeira vez a golden share para abortar o negócio, contra a vontade de Ricardo Salgado e do BES. Assim foi. Um mês depois, porém, a Vivo seria mesmo vendida à Telefónica, enquanto a PT se mantinha no Brasil com a entrada na Oi (uma companhia menor) através de uma operação que estava a ser avaliada há anos pelas empresas e pelos dois Governos, e pessoalmente entre Sócrates e Lula da Silva, o presidente brasileiro. Neste caso, o primeiro-ministro até faria uma declaração em São Bento para anunciar um “acordo excelente”. Segundo o ex-espião Jorge Silva Carvalho, os serviços secretos chegaram a fazer relatórios sobre o risco do investimento na Oi — para o qual também Cavaco diz ter alertado — mas “a maior parte” dessa análise “foi ignorada”. Com o descalabro deste negócio, a PT acabaria por implodir…
COMUNICAÇÃO SOCIAL: A GRANDE OBSESSÃO
O primeiro caso de grande impacto público aconteceu na sequência da notícia sobre as irregularidades da licenciatura de Sócrates em Engenharia Civil, avançada pelo “Público” em março de 2007. O Expresso havia de completar a informação com a história do curso tirado ao domingo, e tudo se precipitou. O Expresso publicou então um artigo sobre as pressões generalizadas do primeiro-ministro e do seu gabinete sobre os jornalistas e a ERC abriu um inquérito. O diretor da Renascença, Francisco Sarsfield Cabral, revelou que lhe ligaram várias vezes para não reproduzir a notícia do “Público” sobre o curso, algo que o gabinete já tinha garantido noutras rádios. Ricardo Dias Felner, o jornalista do “Público” que revelou a história, diria que Sócrates lhe ligou sete ou oito vezes, classificando o primeiro telefonema como “violento”. À ERC, assumiu ter entendido as chamadas como “uma tentativa de pressão”, e contou que Sócrates chegou a invocar o nome do patrão, Paulo Azevedo, o CEO da Sonae: “Fiquei com uma boa relação com o seu acionista e vamos ver se isso não se altera”, ameaçou o primeiro-ministro, segundo o depoimento do jornalista.
Luís Bernardo, que foi assessor de imprensa de José Sócrates na maior parte dos seis anos de Governo, admite ao Expresso ter havido “exageros” na relação com os jornalistas. Mas oferece atenuantes: “Tem de se ter em conta o contexto, porque havia relações de amizade antiga com alguns diretores de jornais, tratavam-se por ‘tu’ e isso por vezes gerava confusão.” Nos gritos de Sócrates haveria o excesso de confiança, mas também uma pulsão natural para agir assim (no Governo e na sua assessoria, havia quem lhe desligasse o telefone quando levantava a voz). “Às vezes, em benefício do primeiro-ministro e dos próprios jornalistas, era preferível haver intermediação”, defende Bernardo, sem querer aprofundar mais o tema. O ex-ministro Vieira da Silva reconhece que “há sempre tensão entre os Governos e a comunicação social” e admite que “todos os Governos tentam influenciar”, mas acrescenta que “muito rapidamente se percebe que a capacidade de influência é muito limitada”.
Apesar das denúncias, a ERC não deu como provada a existência de pressões. Aliás, a entidade presidida por Azeredo Lopes — futuro ministro da Defesa do PS no primeiro Governo de António Costa — manteve esse relatório secreto durante nove meses, só o revelando depois de o Expresso recorrer para a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos e obrigar o regulador a revelar as conclusões.
A propósito do caso da licenciatura, Luís Marques Mendes dirá, no Parlamento, em abril de 2007, que José Sócrates sofre de “falhas de carácter”. O líder parlamentar do PS, Alberto Martins, defende-o: “É preciso evitar o regresso ao poder destes professores da virtude, que tornam irrisório o nome da democracia.” No programa “Quadratura do Círculo”, António Costa afirmará — a propósito da sucessão de casos que vão atingindo o secretário-geral socialista — que discutir o carácter dos políticos é “baixa política”. Hoje, Francisco Assis, que também teve o papel de defender José Sócrates à frente da bancada parlamentar, assume que “nem sempre esteve de acordo” com o primeiro-ministro, mas “há alturas em que a pessoa, ou se demite das funções que desempenha ou acaba por ter algum grau de compromisso, até porque está de um lado do combate político”. E explica: “Aumentei muito a lucidez por não estar no centro do debate. Hoje é fácil olhar para trás e achar que provavelmente estava errado, mas naquela altura também havia uma componente emocional.”
“Quero reafirmar que nunca tive conhecimento, fosse por quem fosse, do empréstimo que este [Berardo] negociou com a CGD para reforçar a sua posição acionista no BCP”, diz Sócrates
Nos bastidores, nos gabinetes, eram recorrentes as piadas sobre o curso de Sócrates ou sobre o Inglês Técnico do engenheiro, que não tinha o melhor domínio da língua. Um ex-governante diz que o caso da licenciatura foi olhado internamente com complacência, como uma “parolice” de uma geração dos anos 80 que se dedicou à política sem estudar e que agora queria “essas credenciais”, à procura do estatuto social. “Num país do norte da Europa nenhum primeiro-ministro se aguentava no poder com um curso tirado daquela maneira”, sublinha o presidente da SEDES, Álvaro Beleza. Apesar da chuva de casos, os membros do Governo não punham o chefe em causa. “Durante todo aquele período, estava longe de imaginar tudo aquilo que agora é apontado”, afirma ao Expresso um ex-ministro que pede para manter o anonimato. “Havia uma orientação claramente reformista” em muitas áreas no primeiro mandato — justiça, educação, plano tecnológico —, mas depois com a perda da maioria, em 2009, “e o adensar do caso Freeport sobre a idoneidade de Sócrates, foi um período mais complicado da governação”. Segundo o mesmo ex-governante, uma coisa eram as notícias, outra era o homem que ele julgava conhecer: “Aquilo que me era dado a perceber e conhecer no contacto pessoal do dia a dia não batia certo isso”, ou seja, com a sucessão de casos que iam sendo divulgados ou agora com o que se sabe da Operação Marquês. Outro antigo membro do Governo acrescenta: “Criticar o estilo de jornalismo da Manuela Moura Guedes, quem não o faria?”
Nesses anos, o “Público“ seria alvo de uma lenta asfixia através da publicidade que dependia do Governo, que caía a pique, quando comparada com a do “Diário de Notícias”, o seu concorrente direto e que vendia menos, mas não era hostil ao primeiro-ministro. Uma investigação da “Sábado” chegou a essas conclusões, o que motivou uma queixa da Controlinveste (dona do “DN”), contra a revista, e levou a ERC a abrir um inquérito. Apesar do relatório destacar que o “Correio da Manhã” (do grupo da “Sábado”) é que recebia mais publicidade do Estado, os dados daquele estudo da Marktest para a ERC confirmava a tendência identificada pela revista. Segundo o relatório, em 2008 o “Público” tinha faturado €3,5 milhões ao Estado (a preços de tabela, ou seja, sem descontos, e sem contar com classificados), contra €4 milhões do “Diário de Notícias” (meio milhão de diferença). No ano eleitoral de 2009, a diferença agravava-se com €3,7 milhões para o “DN” e €2,9 milhões para o “Público” (€800 mil de diferença). A Portugal Telecom, por exemplo, em 2009 investiu apenas 4,8% do seu orçamento para a imprensa no jornal da Sonae, e gastou mais do dobro no diário da Controlinveste (10,6%). O Turismo de Portugal, então presidido por Luís Patrão, amigo de juventude de Sócrates desde a Covilhã, tinha gasto 17,2% do budget com o “DN” e apenas 1,7% com o “Público”. O Ministério da Economia, de Manuel Pinho, por exemplo, dedicava 13,5% do total dos seus investimentos publicitários de imprensa ao “DN” e só 2,4% ao “Público”. O “Sol” também padecia de cortes na publicidade, segundo os mesmos dados. Conclusão da ERC? Fez uma advertência à “Sábado” por não ter ouvido o “DN” no artigo, mas não tirou qualquer conclusão sobre a politização dos investimentos. Aliás, o deputado socialista João Serrano diria numa comissão parlamentar que “o estudo da Marktest mostra que não há qualquer afetação política dos recursos públicos aplicados em publicidade”.
“Estou absolutamente confortável”, diz hoje José Alberto Azeredo Lopes, então presidente da ERC, sobre as decisões do Conselho Regulador. “Não renego nenhuma das decisões que tomei”, assume ao Expresso, justificando que “o organismo deve decidir com os dados de que dispunha e que era possível aportar naquela época, e não agora através de uma reconstrução histórica”. O homem que seria depois ministro da Defesa de António Costa e que caiu por causa do furto de Tancos, viu agora o Ministério Público pedir a sua absolvição em julgamento quando antes o acusava de crimes como denegação de Justiça. Perante as questões do Expresso, Azeredo Lopes faz questão de lembrar que “quem impediu a compra da TVI pela Ongoing foi a ERC”. E argumenta: “Só não houve um controlo de mais de 60%, porque houve a decisão da ERC contra tudo e contra todos. Se há decisão que aguentou maravilhosamente o decurso do tempo foi essa. Como seria hoje o panorama audiovisual se a ERC tivesse aceitado o quinto canal ou a compra da TVI pela Ongoing?”, questiona. “Critico as reatualizações da história à luz dos dados de hoje, mas à luz da época, seria desastroso para o pluralismo.” Para a ERC, a Ongoing só poderia comprar a TVI se vendesse a sua participação de 30% na Impresa (que detém a SIC).
A GRANDE CONSPIRAÇÃO EM NOME DO “CHEFE MÁXIMO”
Mas mesmo antes de se dar este facto relatado por Azeredo Lopes, chegou a estar em marcha uma grande conspiração, que no limite punha a TVI nas mãos da PT, afastava José Eduardo Moniz da liderança da estação (e a controversa Moura Guedes), e podia abrir a possibilidade de uma reconfiguração dos grupos de media nacionais, incluindo a Cofina e a passagem da Impresa, dona do Expresso e da SIC, para as mãos da Ongoing, de Nuno Vasconcellos — uma das empresas da órbita do Grupo Espírito Santo, dona do “Diário Económico” — que também cairia com estrondo e que continua sob escrutínio por causa das dívidas à banca.
Era este o grande plano do “Polvo” que aparecia a letras garrafais, na manchete do “Sol” no dia 12 de fevereiro de 2010, quando aconteceu o inesperado: uma providência cautelar do socialista Rui Pedro Soares, administrador da Portugal Telecom, para evitar a publicação e a distribuição do semanário, que ia divulgar transcrições de escutas do processo Face Oculta a indiciar uma manobra envolvendo Sócrates para a Portugal Telecom comprar a TVI. Era, supostamente, o “chefe máximo” mencionado nas escutas pelos peões, Rui Pedro Soares e Paulo Penedos (este condenado a pena de prisão no processo Face Oculta).
O então primeiro-ministro classificaria as notícias como “jornalismo de buraco de fechadura”, na verdade “um crime”, e jurava: “Todos aqueles que referem uma ligação entre o Governo e a PT no que diz respeito à intenção da PT comprar a Prisa estão a faltar à verdade. Mantenho tudo o que disse no Parlamento.” No Parlamento, que dissera seis meses antes, à época dos factos? “O Governo não recebeu qualquer tipo de informação sobre as perspetivas estratégicas da PT” para comprar uma estação de televisão. Minutos depois, admitiria aos jornalistas nos corredores: “Não fui informado do ponto de vista formal.” Ou seja, sabia por outras vias, e isso ficou assinalado no relatório da comissão parlamentar de inquérito sobre o assunto. Marcelo Rebelo de Sousa, no seu comentário na RTP, vaticinava: “A demissão de Sócrates é uma tonteria. Ele vai acabar mal, mas não é já.” Tinha razão.
Mesmo com o meganegócio abortado em cima da hora — com o contributo de uma declaração pública de Cavaco Silva a pedir “transparência” —José Eduardo Moniz deixaria em breve de ser diretor-geral da TVI para se tornar vice-presidente da Ongoing. Pouco tempo depois, o “Jornal de Sexta”, de Manuela Moura Guedes, seria tirado do ar. Um administrador justificou à jornalista que “por ordem dos acionistas espanhóis [a Prisa] iam suspender o jornal por pressão do primeiro-ministro”, contou Moura Guedes no livro “Cercado”, do jornalista Fernando Esteves.
Se alguma vez José Sócrates quis controlar isto tudo, ou “partir a espinha ao Ministério Público”, não funcionou. Ou funcionou ao contrário
Estava arrumada a questão da TVI, mesmo sem a PT ter de gastar os seus milhões. Ou quase, porque ainda haveria uma comissão parlamentar de inquérito a todo este caso, e que seria objeto de assunto entre Sócrates e Cavaco Silva, segundo conta o ex-PR no seu livro de memórias: “Senhor Presidente, podia fazer alguma coisa para pôr um travão na comissão de inquérito”, terá dito o primeiro-ministro durante uma conversa com o Presidente sobre os investimentos da PT no Brasil. “O senhor primeiro-ministro sabe que isso é uma ideia absurda…”, terá respondido Cavaco.
Mais uma vez, a ERC entraria em ação. Conclusão? A entidade não deu por demonstrado que a suspensão do “Jornal de Sexta” tivesse sido determinada por interferências do poder. No entanto, deu como provado que, “entre os vários fatores que estiveram na origem da decisão” de suspender aquele noticiário “se encontram o peso e o impacto das reações públicas de crítica ao programa provenientes de responsáveis do PS, nomeadamente o seu secretário-geral”.
Como de costume nas decisões mais polémicas da ERC, o jurista Luís Gonçalves da Silva — um dos membros do Conselho Regulador escolhido pelo PSD —, votou contra o relatório. Dois meses depois da decisão sobre a TVI, demitia-se com críticas ao funcionamento do regulador. Na sua carta de demissão, escreveu que “a ERC foi e é, em muitas situações, um obstáculo à liberdade de imprensa”. E classificava o fim da publicitação das declarações de voto no site do regulador como uma “tentativa de silenciamento”. Mais do que isso, denunciava que, “em processos em que estava em causa o poder político, ocorreram verdadeiros entorses às mais elementares normas, o que condicionou os resultados das investigações”. Uns anos mais tarde, quando o ministro do PSD Miguel Relvas foi alvo de apreciação pela ERC por pressões sobre uma jornalista do “Público”, as conclusões não seriam diferentes, apesar da composição do regulador já fosse outra.
Dezasseis anos depois de ter conquistado a única maioria absoluta para o PS, o chefe antes idolatrado pelas bases está fora do partido, os seus cães de guarda dizem-se desiludidos, são raros os que ainda o defendem e os socialistas não parecem dispostos a avançar para uma reflexão profunda sobre a era socrática. Se alguma vez quis controlar isto tudo, ou “partir a espinha” ao MP, não funcionou. Ou funcionou ao contrário. Como na Teoria do Caos, as borboletas que bateram as asas entre 2005 e 2011 naquele Governo, ainda hoje estão a provocar tempestades.
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Olá caro leitor, obrigada por comentar... sei que apetece insultar os corruptos, mas não é permitido. Já não podemos odiar quem nos apetece... (enfim) Insultem, mas com suavidade.
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